Diário de um Legendário, dia 2: as conversas sobre família que fazem homens chorarem na montanha

  • 27/07/2025
Diário de um legendário, dia 2: quando homens choram na montanha A frase acima, dita diante de uma casa abandonada, caindo aos pedaços, durante uma das micropalestras rumo ao topo da montanha, foi o ponto de virada para muitos homens no segundo dia da minha trilha com os Legendários -- o retiro masculino e cristão que ganhou fama nas redes sociais. Quem leu o primeiro dia deste diário conhece o objetivo. Eu, homem cristão que cresceu em lar evangélico e tem interesse no assunto, subi a montanha para responder: o que acontece, afinal, entre os Legendários? Se no primeiro dia o cansaço físico e a disciplina militar deram o tom da experiência, agora se somavam a isso as memórias, os traumas e as relações familiares. As mensagens no segundo dia falaram de pais ausentes, da reconstrução de lares e do peso que um homem carrega quando não cura o passado. A cada nova dinâmica — entre cordas, trilhas ou em volta da fogueira — vinham perguntas difíceis: com que homem você aprendeu a ser homem? Que tipo de pai você quer ser? O choro deixou de ser exceção. Homens se ajoelharam, se abraçaram, se deixaram emocionar. Foi o dia em que o silêncio deu espaço às histórias. Importante lembrar: tudo isso aconteceu com homens fisicamente exaustos e fragilizados pelas tarefas duríssimas dos dois dias. O g1 publica este Diário de um Legendário em quatro partes diárias, entre sábado (26) e terça-feira (29). Não levei gravador, câmera, nem celular, que eram banidos. Mas tomei notas, que baseiam as ilustrações da equipe de arte do g1. E o que relato aqui é o que vi, ouvi e vivi durante o retiro. Quase um reality show Acordados aos gritos de comando de legendários ao redor das barracas no escuro, de madrugada, os 170 "senderistas" (nome dado aos homens que, como eu, estavam no caminho para se tornar legendários) foram se desentocando e cumprindo as ordens: desarmar sua tenda e deixar pronto o mochilão para o novo dia. A expressão na cara de todos era de cansaço, confusão -- e um quezinho de ódio, sejamos honestos, reflexo claro do pouco tempo de sono. Mal sabíamos que estava tendo início o dia mais longo e árduo da vida de muitos de nós até ali. Alinhados, passamos a fazer exercícios militares, a maioria deles em formato de disputa. Passar por debaixo das pernas de um corredor de irmãos, formar uma “centopeia” abraçando com as pernas o irmão da frente e se movendo em grupo só com os braços, rolar por sobre os corpos de irmãos deitados ombro a ombro no chão... Como expliquei no primeiro dia, fomos divididos em grupos chamados de "famílias". Os "irmãos" das famílias vencedoras ganhavam o direito de sair e observar o resto daquela disputa de fora. Abuelita, perrito e um homem a menos Um dos exercícios mais controversos é o da "abuelita". O "Voice", principal voz de comando entre os legendários, conta uma história da avó do guatemalteco Chepe Putzu, criador do Legendários -- leia entrevista dele ao g1. Na Guatemala se fala espanhol, então não é à toa a presença de termos hispânicos no conceito do movimento. Lá, a vovozinha tinha um "perrito" (cachorrinho) que adorava um carinho, e ela ria quando ele se deitava com a barriga para cima, sacudia as patas e chorava pedindo atenção. Em seguida, a voz imponente ordenou que todos se deitassem com as costas no chão e fizessem o mesmo. Desatento, um irmão se deitou sobre um pequeno monte de esterco semisseco. Nessa atividade não havia disputa, mas pensei que o amigo ali definitivamente não foi o vencedor. Ao fim dos exercícios, já sob a luz do dia nublado e frio, recomeçamos a caminhada. Mas logo no início meu grupo foi interrompido por um senderista que vinha de trás pedindo passagem. O líder da nossa família recebeu a informação de que deveríamos orar por esse homem. Parou diante dele e pediu permissão, ao que foi respondido com um palavrão e o tom indignado: “Eu não quero oração, eu só quero ir embora. Vocês são fanáticos demais!”. De 170, viramos 169 senderistas. Micropalestras, lições e a casa abandonada A manhã começou com trilha leve pontuada por micropalestras que vinham sempre acompanhadas de algum desafio ou lição. Diante de uma grande poça, fomos lembrados do clima de guerra a que estávamos sendo submetidos e tivemos que passar lama na cara, com referência direta a Rambo, o soldado matador personagem da franquia de Stallone. Em outro momento, às margens de um brejo, a família em círculo teve que sustentar uma corda passando por trás das cinturas, enquanto um dos irmãos se equilibrava sobre ela e tinha que dar uma volta completa no grupo. As palestrinhas eram ministradas por legendários que se alternavam, dificilmente algum se repetia. De modo geral, as falas reforçavam que estávamos ali nos tornando “homens inquebrantáveis”, que não cedem diante do pecado, sabem trabalhar em família, diferenciados de outros homens não tementes a Deus. Esses outros, segundo eles, se entregam à corrupção e são os grandes responsáveis pelas mazelas do país –e pelas famílias desestruturadas. Um momento impactante para muitos foi o sermão sobre a casa abandonada. Paramos diante de uma casa aos pedaços, cheia de mato, sem telhado e com alguns brinquedos espalhados à porta. Ao que o legendário pergunta: E veio a mensagem: para Deus, aquela casa é a sua família e ela vai sempre ter salvação. Vários homens começaram a chorar, alguns aos soluços, sendo confortados pelos irmãos. Da base ao cume, subida intensa Sentados à base de uma montanha, a partir de onde o aclive era visivelmente puxado, fomos orientados a começar a subida em introspecção, falando com Deus ou cantando músicas cristãs. Conversas eram interrompidas com frases como: A trilha tinha trechos com sinais de que havia sido aberta recentemente, com manta orgânica (o mato fofo que se forma no chão da floresta), galhos pontiagudos recém-cortados nas laterais e fitas coloridas amarradas indicando o caminho. Em alguns trechos, devido ao ângulo de inclinação, amarraram cordas para ajudar na subida, sempre dificultada pelas mochilas pesadas. Se por um lado os obstáculos ajudavam no sentido de exigir concentração e evitar as conversas, por outro ficava também um pouco difícil focar no papo com Deus durante a subida. A vista, a presença, a chegada Já bem lá no alto, a trilha chegou a um trecho plano de mato baixo onde a vista se abriu. Nas enormes montanhas vizinhas cobertas por mata fechada, palmeiras frondosas e algumas árvores mais altas de folhagem amarelada se destacavam, sacudindo sob o vento. Ao longe, o terreno plano era tomado por vegetação rasteira e alguns pastos, com vista para outras montanhas mais afastadas. Por entre as nuvens, o sol passava e iluminava pedaços da cena enquanto ajudava a aumentar a temperatura. Pouco mais acima, chegamos. Um corredor de 20 e poucos legendários aguardava para nos receber com palmas e gritos de “AHU” — sigla para Amor, Honra e Unidade, uma das marcas do movimento — , agora desmascarados e sorridentes, nos parabenizando por termos chegado ao pico. Mas a estimativa (pela posição do sol) de que ainda era por volta de meio-dia dava a dica: ainda havia muita coisa pela frente. Confia e vai? A breve celebração foi seguida por um exercício de confiança, em que andamos vendados de mãos dadas num caminho meio em zigue-zague que não parecia ter muita lógica, até chegarmos a um ponto em que, desvendados, tivemos a vista para o outro lado da montanha -- igualmente belíssima. A mensagem trazia duas reflexões: a família pode e deve confiar cegamente na direção dada pelo seu líder (o pai de família temente a Deus, nessa analogia); um legendário deve confiar em Deus quando não conseguir enxergar o caminho à frente. A longa e sinuosa ‘milha extra’ Na sequência, veio a micropalestra que nos apresentou o conceito da “milha extra”. A expressão bem conhecida no inglês (“go the extra mile”) é a base para pensar que um legendário pode sempre superar seus limites, aguentar um fardo mais pesado e ir mais longe, oferecer mais de si em prol de um propósito, sem se contentar com o objetivo inicial alcançado. Assim como se passava na montanha. Aproximava-se o momento de ir além e dobrar a meta. Depois de uma breve leitura bíblica livre e um tempo considerável de almoço e descanso --“longo” para os padrões do evento: estimo que durou uns 90 minutos --, iniciamos a caminhada mais difícil de todas. Era a materialização de uma longa e sinuosa milha extra. Ombros, costas, palmas dos pés: tudo dói Com o corpo exausto, cada passo na trilha de horas parecia um teste de resistência: ombros ardendo, costas e pés doloridos, fome, sono e uma mochila pesada nas costas. A noite caiu, o caminho seguia desconhecido, e a mente só repetia: “Acho que falta pouco, preciso aguentar mais um pouco”. Até que, finalmente, chegamos. O local era diferente do primeiro acampamento. Dessa vez armamos as barracas em fileiras por família. A minha ficou pronta por último de novo, mas conseguimos chegar num resultado um pouco melhor do que a primeira noite e em menos tempo. Os mais dispostos ou famintos (meu caso) ainda cozinharam macarrão instantâneo, outros se entocaram e sumiram imediatamente. Com o sono acumulado após não ter dormido na primeira noite, preferi entrar na tenda, fechar os olhos e descansar enquanto havia tempo, sem tomar notas. Sábia decisão, já que não demorou muito para sermos acordados no meio da noite por novos gritos de comando, dessa vez um pouco diferentes: Relação pai e filho, quebrantamento Do lado de fora, a orientação era que seguíssemos por um caminho que levava para a parte mais alta do descampado. De longe dava para ouvir um som de voz e violão e ver a luz e a fumaça de uma fogueira para onde caminhávamos. Os senderistas ocuparam um semicírculo em volta da fogueira. Do lado oposto, um legendário conduzia o louvor tocando violão e cantando muito bem algumas músicas conhecidas; vários homens passaram a cantar junto. Veio então o sermão que mais impactou o grupo. Digo “sermão” porque o clima já não era mais de palestra, mas sim de igreja: as canções com letras emocionais, a meia-luz da fogueira, o tema e o tom pastoral que o legendário à frente adotou contribuíam bastante para isso. A fala era sobre paternidade. E não era apenas sobre o papel de pai que um homem deve assumir com responsabilidade na família. Ele falou sobre a relação que os homens estabelecem com seus pais na infância e ao longo da vida, e sobre o peso que isso tem mais tarde quando esses homens têm seus próprios filhos. O legendário deu um exemplo de sua adolescência, quando lhe marcou profundamente a ausência do pai no momento em que ele precisou aprender a dar um nó de gravata. Também falou sobre como os problemas que um homem teve com seu pai na infância podem muitas vezes prejudicar a relação dele com Deus. E disse que aquele era o momento para curar sua relação com Deus. Ao fim da palavra, um número considerável de homens estava chorando copiosamente, se abraçando e reconfortando, alguns se ajoelharam no chão diante da fogueira. Foi quando, pela primeira vez, os legendários ao redor se aproximaram com os rostos descobertos para de fato conversar --e orar-- com os senderistas. Eu me emocionei como todo mundo, só imaginando que aquele sermão tinha potencial para bater fundo em qualquer pessoa, homem ou mulher, espiritualizada ou não. Tem mais? No curto caminho de volta até as barracas, me veio à mente um retiro que marcou o início da minha adolescência: o Encontro com Deus. O modelo veio da Colômbia, foi adotado por igrejas brasileiras mais próximas do neopentecostalismo evangélico e contém aspectos que se assemelham à estrutura do Legendários. Aos meus 13 anos, lembro de quão intenso foi voltar cheio de energia para a vida real, me sentindo um queridinho de Deus, disposto a ser correto e eliminar "pecados" como a masturbação e o interesse em outras meninas que não fossem a que eu queria namorar (mas que eu nem namorava ainda; spoiler: nunca namoramos). Aquele potencial de transformação já estava agindo de diferentes maneiras nas vidas de diversos homens ali. E se o Legendários já havia sido tão intenso até então, o que mais poderia nos esperar pelos próximos dois dias de retiro? Àquele ponto, eu só queria voltar para minha barraca e descansar antes do próximo chamado da alvorada. E confesso que cheguei a delirar sozinho antes de dormir, imaginando: “Bom, acho que o pior realmente já passou, amanhã eles devem nos levar a um bom hotel-fazenda 5 estrelas para refletir, confraternizar e fazer networking." Mas, é claro, não foi bem assim.

FONTE: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2025/07/27/diario-de-um-legendario-dia-2-as-conversas-sobre-familia-que-fazem-homens-chorarem-na-montanha.ghtml


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