Reportagem especial do TG consegue imagens inéditas do resgate de uma das aves mais ameaçadas do mundo, que chegou a ser extinta da natureza, mas voltou para Mata Atlântica do Nordeste depois de 40 anos Mutum-de-Alagoas e o cordel do recomeço
Se essa história fosse o verso rimado de um cordel, começaria com uma pergunta: o que os holandeses que invadiram o Brasil, em 1630, têm a ver com uma das aves mais raras do planeta que sumiu?
A resposta é simples, foi a comitiva do príncipe Maurício de Nassau que descreveu a espécie pela primeira vez. “Eles trouxeram um séquito de sábios para estudar e entender o que era o Brasil naquela época. Entre os pesquisadores estava Georg Marcgraf (naturalista alemão), que fez uma xilogravura perfeita do mutum. Você identifica a espécie, sem errar, até hoje”, explica Luís Fábio Silveira, que é ornitólogo e diretor científico do Museu de Zoologia da USP.
Xilogravura do mutum feita pelo naturalista alemão Georg Marcgraf em 1648
Acervo
Séculos depois, essa descrição ainda é tema de um “dilema geográfico” sobre o nome popular da espécie, o mutum (Pauxi mitu) é do Nordeste, ou, exclusivamente de Alagoas?
“Marcgraf fez esse levantamento em 1630 e Alagoas se emancipou de Pernambuco em 1800, portanto, não existia o Estado de Alagoas, somente a capitania de Pernambuco, então, a ave foi classificada como se fosse Pernambuco, mas até que me prove ao contrário, a espécie só ocorria no Sul de Alagoas. Só há registros para essa região. Por isso, o mutum é de Alagoas”, esclarece o presidente do Instituto de Preservação da Mata Atlântica Fernando Pinto.
Fernando Pinto foi um dos entrevistados na reportagem especial sobre o mutum
Ricardo Custódio/TG
Os canaviais e a extinção da espécie
O Brasil só tem cerca de 12% da vegetação original da Mata Atlântica, sendo que, em Alagoas, esse número é ainda mais agravante, existem apenas 3% dessa vegetação remanescente.
O mutum-de-Alagoas começou a desaparecer da natureza em meados de 1970 e um dos principais motivos foi o avanço dos canaviais sobre as florestas onde a espécie vivia. “Era o período da crise do petróleo mundial e o Próalcool (programa de segurança energética do governo militar) estabelecia um plantio indiscriminado de cana. Para plantar você tinha que desmatar, não havia critérios, então, você fazia o desmatamento amplo e o governo financiava esse desmatamento. Você só recebia o dinheiro comprovando que a área tinha sido totalmente desmatada”, diz Alberto Fonseca, promotor de justiça de Alagoas.
Mutum-de-alagoas é uma espécie de ave da família Cracidae
Reprodução/EPTV
Pesquisador que “caiu” três vezes de avião resgatou os últimos mutuns da natureza
Foi o empresário carioca Pedro Nardelli que mudou os rumos da extinção da espécie. Dono de um criatório científico particular, ele viajou pelo Brasil atrás de aves e chegou a sofrer três acidentes aéreos durante pesquisas de campo. Nardelli foi o responsável por resgatar os últimos exemplares de mutuns-de-alagoas antes que a ave desaparecesse de vez da Mata Atlântica. “Se o Pedro não tivesse aparecido em Alagoas, hoje a gente estaria apenas lamentando a extinção da primeira espécie de mutum da história”, comenta Luís Fábio.
Pedro Nardelli foi um dos responsáveis por evitar que o mutum desaparecesse
Acervo Pedro Nardelli
O objetivo de Nardelli era resgatar as aves para criar em cativeiro, uma população de segurança da espécie. “Eu vi a última fêmea de mutum-de-alagoas na mata. Na época, disse a Nardelli: ‘Vamos pegar porque os motosserras estão chegando’. Ele disse: ‘Não, eu não quero carregar na consciência que eu peguei a última. Se tem um ninho é possível ter um macho. Ainda há esperança’. Eu disse: ‘Pedro, daqui eu estou vendo a usina avançar’. Ele me disse: ‘Vamos deixar’. Essa foi a última fêmea que se teve notícia”, relembra Fernando Pinto.
Com alguns casais de mutuns capturados, o empresário começou a reproduzir a espécie em cativeiro. “Meu pai (Pedro Nardelli) sempre foi preocupado com esses projetos que envolviam natureza, ele sempre quis que as coisas fossem preservadas para as gerações futuras. A ideia era manter essas aves em cativeiro até o momento em que a sociedade estivesse pronta. Daí, então, as aves seriam devolvidas para as matas”, relata o empresário, Marcelo França Nardelli, filho do pesquisador carioca que ajudou a evitar a extinção do mutum.
O TG teve acesso a registros inéditos de Pedro Nardelli, feitos na época do resgate das aves. São imagens dos primeiros casais que se reproduziram em cativeiro.
“Cupido” para o mutum
Por causa de problemas financeiros, em 1999, Pedro Nardelli teve que se desfazer das aves. Uma parte dos mutuns-de-Alagoas foi levada para Poços de Caldas e a outra para a região metropolitana de Belo Horizonte.
Em Contagem, Roberto Azeredo, que é o fundador e presidente da Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre, o CRAX, foi o responsável por desenvolver uma técnica inovadora em cativeiro. Ele conseguiu acelerar a reprodução do mutum-de-alagoas, que na natureza é uma espécie monogâmica. “Eu usei um macho para se reproduzir com sete fêmeas. O objetivo era aproveitar um bom reprodutor geneticamente com mais parceiras possíveis. Antes nascia um, ou, dois filhotes por ano, depois que começamos fazer desse jeito, no primeiro ano nasceram 67 filhotes”, relembra.
Roberto Azeredo revolucionou o método de reprodução dos mutuns em cativeiro
Ricardo Custódio/TG
O objetivo é conseguir uma população viável que garanta a sobrevivência da espécie na natureza. “Nós estamos implantando o projeto 50 casais puros, que é uma base segura. Com esse número se reproduzindo, mesmo com toda dificuldade reprodutiva, você vai ter aves para soltar novamente na natureza”, explica James Simpson, vice-presidente da CRAX.
Três casais de mutuns já voltaram para a terra natal, em um ensaio do que há de vir pela frente. O Terra da Gente teve a oportunidade de contar em detalhes toda essa história, toda saga dessa espécie, digna de uma história de cordel com final feliz. Confira nosso material em vídeo.
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